sexta-feira, 21 de maio de 2010

João Bénard da Costa § 7/2/1935 — 21/5/2009

O DIVINO BÉNARD


Divino no sentido de divo, que ele sem o ser plenamente foi, com o seu porte de velho senhor, o mesmo riso de demiurgo que quase juramos haver já visto fixado pelos romanos em alguma estatuária, o brilho hiperbólico, a inteligência analogamente intensa, o timbre cavo, a curiosidade, a coquetterie, o enigma e, por fim, surpreendentemente ou não, a inocência.
E divino também no sentido literal, na medida em que essa era a natureza do seu olhar. Quando João Bénard explicava aos incautos (os mesmos que, sem o saber ou dizer, chegam tão cautos) que o seu tempo não era este, não era o deles, era o da maria cachucha, que reivindicava ele? Uma imperdoável apostasia: a de um contemporâneo que se coloca na pré-história.
O seu tempo era aquele em que o homem que pensa não é apenas o sábio, mas também vidente e profeta. Foi assim que Epiménedes de Creta teve o privilégio de ver a verdade (aletheia) com os próprios olhos. E Moisés entreviu a Deus pelas costas. Foi assim que na tradição persa o termo verdade (Rta) se alargou a um extensivo de possibilidades semânticas: a exactidão, mas também a mecânica que assegura o retorno da aurora, a oração litúrgica, a ordem e o direito. A verdadeira diagnose é esta que não teme, mas religa o que apressadamente declaramos como antinomias: Deus e os homens, o visível e o invisível, o eterno e o mortal, o permanente e o mutável, o forte e o fraco, o puro e o híbrido, o seguro e o incerto.

A escrita de Bénard, costurada em digressões permanentes, parêntesis e alvéolos, mostra, além disso, como a palavra é inseparável da memória. Nos ambientes gregos inspirados, ela era tida por omnisciência de carácter divinatório, expressa no mantra: «o que é, o que será, o que foi». Nos meios judaicos e cristãos, era interpretada pelo binómio profecia e cumprimento. A memória não é apenas o suporte da palavra: é, sobretudo, a potência (poética, maiêutica…) que confere ao verbo o seu estatuto de significação máxima.

«Serás o que Deus é», escreveu o místico Silesius.

José Tolentino Mendonça

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