quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Evocação de Sophia (II)

«Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará “como se eu não estivesse morta”? “Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta”?
«Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, “sempre a poesia foi uma perseguição do real”. Quando recordou a “maçã enorme e vermelha” “poisada em cima de uma mesa”, “num quarto em frente do mar” (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava) não recordou “nada de fantástico” “nada de imaginário”. “Era a própria presença do real que eu descobria.” Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. “Também morre o florir de mil pomares / e se quebram as ondas no oceano”. Ou: “Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes”. Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo.
[…]
«Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia Antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque “a arte é filha da memória”. Sophia, eu lembro-me.»

João Bénard da Costa, “Sophia: memória – 2 de Julho de 2004”, in Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, 2º volume, Assírio & Alvim, 2010.

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