quarta-feira, 11 de julho de 2012

A Obra de Eugénio de Andrade, em breve, na Assírio & Alvim…


OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Morreu Gerrit Komrij

Comunicado de imprensa da sua editora neerlandesa — De Bezige Bij


Também em nome da família, a editora neerlandesa De Bezige Bij informa que Gerrit Komrij faleceu ontem à noite, em Amesterdão, após um curto período de hospitalização.

Com ele perdemos um importante poeta, um autor e tradutor multifacetado, um grande estilista, um polemista mordaz e, sobretudo, um amigo querido. Gerrit Komrij foi um inspirador para gerações de poetas, escritores e jovens conquistadores dos céus, e continuará a sê-lo.

Gerrit Komrij (Winterswijk, Países Baixos, 30 de março de 1944) estreou-se em 1968 com o volume de poesia Maagdenburgse halve bollen en andere gedichten (Hemisférios de Magdeburgo e Outros Poemas), que atraiu logo a atenção pela poesia contra a corrente, rimada em formas fixas e um humor absurdista. Komrij manter-se-ia sempre fiel ao ofício de poeta. No total, publicou uma boa dúzia de livros de poesia, reunida em Alle gedichten tot gisteren (Todos os Poemas até Ontem, 2004). Em português, foi publicada a antologia poética Contrabando (Assísiro & Alvim, 2005). Sobre a secretária em Portugal deixou o volume Boemerang (Bumerangue), pronto para uma última revisão. O livro será publicado postumamente, neste outono.

Foi um crítico e colunista ímpar, compilador de antologias ‘definitivas’ de poesia neerlandesa e sul-africana, um tradutor produtivo (da obra dramática de Shakespeare, por exemplo) e autor de teatro, ensaio e romances.

Durante o ano de 1976, Gerrit Komrij foi um crítico impiedoso de televisão para o jornal NRC Handelsblad; as controversas críticas foram reunidas, em 1977, em Horen, zien en zwijgen (Ouvir, ver e calar). Enquanto crítico literário sentia afinidade com o espírito da época, de procura da verdade e sarcasmo. Nas décadas de setenta e oitenta, ganhou sobretudo fama como ensaísta, não se esquivando de qualquer tema que fosse, desde o feminismo à arquitetura. Também aqui, o seu estilo mordaz mostrou-se a sua arma mais importante. Os ensaios foram reunidos em, entre outros títulos, Heremijntijd (Minha Nossa, 1978), Papieren tijgers (Tigres de Papel, 1978), Averechts (Avesso, 1980), Het boze oog (O Mau Olhado, 1983), Humeuren en temperamenten (Humores e Temperamentos, 1989), Met het bloed dat drukinkt heet (Com o Sangue chamado Tinta, 1991), Morgen heten we allemaal Ali (Amanhã, todos nos chamamos Ali, 2010) e Kunstwonderen (Milagres Artificiais, 2011).

Em 1980, publicou o primeiro romance (autobiográfico), Verwoest Arcadië (Arcádia Destruída). Seguiram-se os romances Over de bergen (Atrás dos Montes, 1990; trad. portuguesa ASA, 1997), Dubbelster (Estrela Dupla, 1993), De klopgeest (O Poltergeist, 2001), Hercules (Hércules, 2004) e De loopjongen (O Moço de Recados, 2012).

Extremamente bem conseguidas e influentes foram as suas colossais antologias poéticas, nomeadamente De Nederlandse poëzie van de 19de en 20ste eeuw in duizend en enige gedichten (A Poesia Neerlandesa dos Séculos XIX e XX em mil e um poemas, 1979) e De 21ste eeuw in 185 gedichten (O Século XXI em 185 poemas, 2010). Hilariante é a sua antologia caprichosa Kakafonie. Encyclopedie van de stront (Cacafonia. Enciclopédia da Merda, 2006).

Komrij ganhou muitos prémios, entre os quais o prémio nacional P.C. Hooft 1993 pelos seus ensaios e o Mocho Dourado (Gouden Uil) 1999 pelo volume de ensaios poéticos In Liefde Bloeyende (Florescendo em Amor). Em 2000, foi-lhe concedido o doutoramento honoris causa da Universidade de Leiden.

De 2000 a 2004, foi o primeiro poeta laureado neerlandês, papel que desempenhou com muito brilho.

Gerrit Komrij viveu em Amesterdão até 1984, ano em que se mudou para Portugal, que evocou magistralmente em Een zakenlunch in Sintra (Um Almoço de Negócios em Sintra, ed. portuguesa ASA, 1999), Atrás dos Montes e Vila Pouca (2008), título nomeado para o prémio Gouden Uil 2009.

Durante décadas, Gerrit Komrij conseguiu, com a sua alegria desenfreada e perspicácia, criar movimento na paisagem literária. Ajudou a mudá-la e agora partiu dela. ‘De papel sois e a papel voltareis.’ (De: Da Capo, Morgen heten we allemaal Ali).


TUDO CONTINUA

Aí se erguia uma parede em que toquei.
A parede foi demolida. O entulho
Serviu mais adiante de fundamento.
Uma árvore plantei no meu jardim.

Que foi asfaltado. A cinco metros
De fundo, a raiz contém-se, amuada.
Meio milénio se preciso. Um dia
Chega a Marte a pneumónica porque tossi.

Houve um amigo a quem escrevia,
Uma rocha onde gravei o meu nome.
Somos parte de tudo enquanto vivemos
E tudo continua quando morremos.

(de: Luchtspiegelingen [Miragens], 2001)

Amesterdão, 6 de julho de 2012
Editora De Bezige Bij

Francien Schuursma, Diretora Comunicação e Gestão de Autores
(tradução Arie Pos/Fernando Venâncio)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Gerrit Komrij § 1944-2012




A TERCEIRA PAISAGEM

Quando num tacho em varanda abrigada
Floria o aloendro, era uma festa.
Agora que tens ao sol do Sul morada,
De plátano e carvalho o sonho resta.

Com a ventura, assim, sempre a fugir,
Andar de cá para lá fez-se preciso,
Que as árvores todas poder reunir
Só num local chamado paraíso —

O sítio onde estarias deslocado.
Porque pousar um pé que fosse aí
Era o fim da cantiga mais certeiro.

Antes assim. Sem o carvalho em ti,
Escapava-te o milagre do pinheiro:
Ter numa agulha a folha por inteiro.

in «Contrabando — uma antologia poética», tradução do neerlandês de Fernando Venâncio

terça-feira, 3 de julho de 2012

Franz Kafka § 03-07-1883 | 03-06-1924

(clique na imagem para a ampliar)

A Assírio & Alvim celebra o  aniversário de Kafka com a publicação de «Os Contos, 2.º Volume — textos não publicados em vida do autor», traduzido do alemão por José Maria Vieira Mendes, Manuel Resende, Teresa Seruya e Álvaro Gonçalves, este último também responsável pela coordenação, selecção, introdução, notas e cronologia. Um livro que estará disponível nas livrarias ainda durante o mês de Julho: Kafka publicou apenas sete pequenos livros, todos incluídos n’Os Contos – 1.º volume – textos publicados em vida do autor. Paralelamente escreveu dezenas de contos, uns, mais ou menos «completos», outros, fragmentários, outros ainda em versão de esboço. O volume que aqui se apresenta traça um limite na selecção de textos que recai no ano de ruptura de 1917, marcado pelo diagnóstico da doença pulmonar de Kafka, que o obriga a uma longa estada no campo (do Outono de 1917 até à Primavera de 1918), na localidade histórica de Zürau, numa quinta de sua irmã Ottla, e que representa uma viragem na sua produção literária.

Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, de uma família pertencente à pequena burguesia judia de expressão alemã. Frequentou o liceu alemão e posteriormente a Universidade Alemã de Praga, onde terminou os estudos jurídicos, obtendo o título de Doutor em Direito, em 1906. Começou a escrever os primeiros textos em 1907, enquanto trabalhava como assessor jurídico em companhias de seguros, onde ficou até à sua aposentação por motivos de doença. Em 1917 sofreu os primeiros sintomas de uma tuberculose de que viria a falecer a 3 de Junho de 1924.